Sua saúde afetada pelo desequilíbrio ambiental
Entenda como o aquecimento global está afetando a sua saúde. Especialistas explicam como ele muda o equilíbrio do corpo, afeta órgãos e favorece a disseminação de doenças transmitidas por insetos
Ondas de calor e frio vêm dando as caras por todo o globo, infelizmente, na forma de tempestades e catástrofes. No dia a dia, sentimos que está cada vez mais quente ou cada vez mais frio. E por mais tempo.
Esse cenário faz pensar nos prejuízos sentidos pela natureza, na escassez de recursos e até no estresse da população, provocado pelas temperaturas extremas. Pouco, talvez, se pense em como as mudanças climáticas se relacionam com condições de saúde de forma mais direta. E, sim, elas podem se revelar na forma de problemas no coração, rins e outros órgãos vitais.
Um relatório deste ano da Organização das Nações Unidas (ONU) mostrou que, mesmo o planeta recuando o ritmo e adotando uma mitigação moderada das emissões de poluentes, cerca de 40 milhões de pessoas podem morrer antes do final do século por causa das alterações de temperatura.
Um estudo da Bureau Nacional de Pesquisa Econômica, uma organização sem fins lucrativos norte-americana, examinou os impactos da mudança de temperatura no risco de mortalidade global. Além de comprovar os estragos, mostrou que eles estão distribuídos pelo mundo de maneira desigual — detalharemos isso mais à frente.
Werciley Júnior, médico infectologista e coordenador da Infectologia do Hospital Santa Lúcia, reforça essa relação sob o seguinte ponto de vista: segundo ele, as mudanças climáticas podem alterar o ciclo hormonal e causar algum tipo de desequilíbrio no corpo. Daí, a saúde reclama.
Esse cenário ambiental também é favorável à alteração na flora, com proliferação de fungos e bactérias. Soma-se a isso a chegada de algumas espécies de mosquitos em regiões que antes eles não habitavam, mas, com o clima mais quente, conseguem, agora, se acomodar.
“Sempre cultuamos que o meio ambiente precisava se adaptar a nós, aos seres humanos. Agora, vemos que nós é que precisamos nos adaptar ao meio”, analisa. A medicina, segundo Werciley, ainda não encara o aquecimento global como uma ameaça real à saúde no mundo, mas um alerta de que é preciso se adaptar com urgência. E a desigualdade social, que mencionamos no primeiro parágrafo, é um elemento crucial no que diz respeito a essa capacidade de adaptação.
Pessoas em situação de vulnerabilidade, principalmente com condições sanitárias precárias, estão mais expostas. “Não que as consequências não estejam sendo sentidas por países ricos ou indivíduos com boas condições financeiras, o problema chega para todos. Mas a população pobre e, portanto, os países de baixa renda sofrem mais, sim”.
Desidratação
A nefrologista Maria Letícia Cascelli detalha uma pesquisa que liga o número de internações por doença renal no Brasil ao aumento da temperatura. O trabalho foi pioneiro no estudo dessa interação a nível nacional. Quanto aos resultados, eles obtiveram que para cada 1ºC que aumenta, o risco de hospitalização cresce em 0,9%.
O risco é maior para mulheres, crianças de até quatro anos e idosos com 80 anos ou mais. Maria Letícia aponta que uma possível explicação para isso é que crianças têm uma menor termotolerância, devido à imaturidade dos sistemas fisiológicos, e os idosos, por sua vez, não sentem tanta sede.
E do contexto da pesquisa para a vida fora dela: como essa relação, de fato, se dá? A especialista responde que, com o aumento da temperatura, as pessoas suam mais. Sem ingestão adequada (e reforçada) de líquido, ficam desidratadas. A repetição dessa dinâmica pode acabar levando a injúria renal repetitiva, o que deixa o corpo propenso a desenvolver um problema crônico.
“Uma pessoa que trabalha cortando cana faz injúria aguda repetitivamente, por exemplo. Não pode descuidar da hidratação. Há mais chance de infecção urinária, complicações renais e, quem sabe, seja preciso até terapia renal substitutiva. Só que, como estamos em ambientes cada vez mais quentes, todos precisam intensificar a hidratação”, chama a atenção.
E mais uma vez provando que os impactos negativos não estão distribuídos de forma harmônica, as regiões Norte e Centro-Oeste do país foram apontadas como áreas mais críticas. A primeira, pelas altas temperaturas, a segunda, pelas secas.
De acordo com a especialista, o estudo tem suas peculiaridades metodológicas, mas serve, além da análise aquecimento global-saúde, para abrir os olhos para o despreparo do sistema de saúde. “Temos 7% da população com algum nível de doença renal crônica e, na população a partir dos 64, esse nível chega a 46%. São milhares de pessoas fazendo hemodiálise, e a verba dos tratamentos de saúde voltadas para esses casos não dá conta.”
Medidas urgentes, debate e o que mais você pode fazer
Buscar soluções que integrem meio ambiente e saúde é com ele mesmo, Jorge Machado, que desenvolve projetos e iniciativas sustentáveis pela Fiocruz no Distrito Federal e em parceria com outras unidades regionais. Não que seja uma tarefa simples nem objetiva, mas desde a Eco-92, a Rio-92, ele vem promovendo a discussão sobre impactos das mudanças climáticas, entre outras abordagens, na saúde da população.
Para ele, a mudança climática é uma emergência sanitária com a qual já convivemos: “Se é o fim da humanidade, deveríamos, naturalmente, nos proteger, produzir formas de convivência que não ameaçassem a própria existência na Terra”, afirma.
Entre as repercussões em termos de saúde, Jorge cita a poluição do meio ambiente e a degradação do ar que vem, com ela, como fonte de problemas cardíacos e pulmonares — um perigo, principalmente, para quem tem dificuldades respiratórias. A baixa qualidade de vida também leva indiretamente a uma dificuldade de reprodução humana. E engana-se quem pensa que os desastres “naturais” não mexem com a saúde. Muito provavelmente, a destruição causada por eles resulta em ruptura com o modo de vida de alguém ou de uma população inteira, muda a convivência e, ao pressionar os povos mais vulneráveis, tem consequências realmente catastróficas.
“As tensões e o sofrimento vividos nesse cenário todo mexem com a saúde mental. Em comunidades quilombolas e entre a população indígena, temos observado casos de suicídio, violência e depressão”, exemplifica.
E o corpo humano consegue suportar esses efeitos? A ação, na opinião de Jorge, precisa ser coletiva. Quando a saúde de todos está em jogo, promover o debate e estar aberto ao debate é o que realmente vale. “Você pode até ter uma conduta de racionalidade ecológica, como ser vegano, mas a pressão externa, de mercado e ordem econômica, influenciam muito. Há lugares em que precisamos equiparar a qualidade do sistema de saúde dos seres humanos aos dos bois, olha só. E, ao mesmo tempo, pensar em territórios saudáveis e sustentáveis” completa.
Recordes meteorológicos
– Em junho de 2020, o Ártico bateu 38ºC, na cidade russa de Verkhoyansk. Nesse mesmo ano, as temperaturas médias registradas estavam 10ºC acima do normal na região.
– Estão sendo verificadas as temperaturas de 54,4ºC no Vale da Morte, na Califórnia, medida em 2020 e 2021, e de 48,8ºC na Sicília, Itália.
– O Kuwait, no Golfo Pérsico, registrou 53,5ºC, em 2021.
– Segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), esta última década foi a mais quente no Brasil. Os anos de 2015, 2019 e 2016, nessa ordem, foram os mais quentes desde 1961.
Fonte: MSF