O rio que transportou uma usina
85 anos da Usina de Monlevade e 180 anos da siderurgia monlevadense
Esse ano, a Usina de Monlevade completa 85 anos – contando a partir do lançamento da pedra fundamental da “Usina Barbanson”, pelo Presidente da República Getúlio Vargas em 1935, iniciando uma fase moderna de produção de aço. Entretanto a siderurgia “aqui” teve início em 1840 – com o pioneirismo de Jan de Monlevade.
Lembrando que toda essa história passa totalmente pelas águas do Rio Piracicaba, que, em primeiro lugar foi um atrativo para que o jovem nobre francês, Jean de Monlevade, se instalasse em 1818 na então São Miguel de Rio Piracicaba.
Depois, o Piracicaba foi a via de acesso dos equipamentos que vieram da Europa e por fim sendo as águas do Piracicaba geradora de força que movimentavam os grandes martelos das Forjas Catalãs, posteriormente energia elétrica para atender à nova siderurgia.
Da Inglaterra a São Miguel do Piracicaba
A “Epopeia” das Forjas Catalãs que se transformaram numa das melhores plantas siderúrgicas do mundo
Haruf Salmen Espindola
Diplomado pela Escola Politécnica de Paris, em 1812, Jean de Monlevade, na sua viagem à capitania das Minas Gerais conheceu a potencialidade do minério de ferro. Casou-se em 1827 e fixou residência na região de São Miguel do Piracicaba, a meio caminho para São José da Lagoa, onde encontrou, às margens do Piracicaba, condições favoráveis para instalar um grande empreendimento siderúrgico: demanda reprimida, abundância de água, matas e minério de ferro.
E os rios entram em cena
O empreendimento exigiu a importação de pesado equipamento da Inglaterra. Em1827, o presidente da província de Minas Gerais, recebeu um requerimento de Monlevade solicitando auxílio para o transporte das máquinas pelo rio Doce, único meio de fazê-las chegar até o local escolhido para a fábrica.
Em 13 de março, o visconde de Caeté ordenou que o comandante geral Guido Tomás Marlière prestasse todo auxílio, através das Divisões Militares do Rio Doce – DMRD e fizesse entrar pela barra do rio Doce e subir até o Porto de Canoas (Antônio Dias), no rio Piracicaba, acerca de nove léguas do destino final, as máquinas, “que pelo seu peso não tinham outro método de introduzir em Minas”.
O Comandante Marlière, que se encontrava no quartel-geral de Guidoval, na Zona da Mata, enviou circular aos comandantes das1ª, 2ª, 4ª e 6ª DMRD, informando sobre a missão.
Diante das dificuldades era necessário um “poderoso auxílio das divisões”. Os serviços das divisões foram repartidos da seguinte forma: todos os praças disponíveis e as canoas da 6ªDMRD, com os melhores pilotos e canoeiros ficariam encarregados da condução da divisa com a província do Espírito Santo até a cachoeira do Baguari (Governador Valadares). O comandante deveria descer logo que recebesse aviso de Lourenço Archilles LéNoir (sic), responsável pela entrega dos equipamentos.
A 1ª DMRD prosseguiria, nos mesmos termos, com as suas canoas e as do comando geral e todos os seus praças, da cachoeira do Baguari (Governador Valadares) à Cachoeira do Leopoldo (Cachoeira Escura – Belo Oriente). Nesse ponto, a 2ª e 4ª DMRD receberiam as máquinas e as conduziriam até o Por todas Canoas, abaixo de Antônio Dias, onde findaria o auxílio.
A “Epopeia”
Um ofício de Marlière dirigido ao vice-presidente, de 16 de dezembro de 1827, informava que logo que chegasse pelo correio a notícia da saída das máquinas do Rio de Janeiro mandaria o aviso. As divisões deveriam estar prontas com gente, mantimentos e canoas para a qualquer momento entrar em ação. O ofício ordenava que a circular fosse levada de um quartel a outro sem que tivesse qualquer demora em um deles, seguindo por canoas militares ou do comércio.
O comandante da 6ª DMRD, a quem caberia o maior trecho de rio e a maior quantidade de cachoeiras para baldear, estava com tudo preparado em setembro de 1827.
Marlière escreveu e mandou que ele aguardasse o sinal positivo do chefe da expedição AchillesLe Noir (sic). Entretanto advertiu com relação à segurança, para que o transporte fosse iniciado somente se não houvesse previsão de perigo ou cheias, do contrário deveria esperar tempo favorável. Uma nova instrução para a 6ª DMRD mandou que fosse aguardar na barra do Rio Doce, no quartel de Regência.
As chuvas estavam apenas começando e, à medida que o tempo passava, ficaria mais arriscado subir o rio Doce. Mesmo assim, foram dadas ordens para que as divisões ficassem de prontidão. Havia uma expectativa de fazer o transporte ainda naquele ano.
Equipamentos deixam o Porto do Rio de Janeiro
No início de outubro Marlière recebeu a notícia de que os equipamentos deixaram o porto do Rio de Janeiro, em 19 de setembro. Determinou que todas as canoas e gente da 4ª DMRD se colocassem de prontidão e despachou aviso para o comandante 6ª DMRD, recomendando que empregasse quantas canoas e gente tivesse a fim de obter o sucesso completo da missão. Afinal, tanto na Corte como em Ouro Preto, todos estariam com os olhos voltados para ver como as divisões iriam se sair. “O Rio de Janeiro olha para nós! Unam-se todas as divisões para este interessante fim”. No final conclui que o “trem” estava no rio Doce, pesava 475 arrobas (6.982,5 quilos) e carecia de cinco grandes canoas.
Para garantir o sucesso mandou o comandante empregar todos os índios que pudesse reunir, mas que se acrescentasse a despesa à conta que seria paga por Monlevade.
O comandante da 6ª DMRD levou consigo mantimentos para a expedição que acompanhava os equipamentos.
Marlière ordenou que fossem mostradas as instruções ao chefe da expedição, para que este se inteirasse das providências ordenadas. Também ordenou, se as canoas e gente da 1ª e 4ª DMRD não fossem suficientes, que a 6ª Divisão continuasse o auxílio até o fim, pois mais importante era o cumprimento da missão. Honra haveria de resultar para esta divisão.
A1ª DMRD se colocou de prontidão na cachoeira do Baguari com bastante gente, mantimento e todos os índios que conseguiu reunir.
Os equipamentos para a fábrica de ferro de Monlevade haviam deixado o porto do Rio de Janeiro numa sumaca (barco pequeno de dois mastros) comboiada por duas pequenas embarcações de guerra, porém, até àquele momento, não havia qualquer notícia. Os tripulantes de duas canoas de comércio que haviam chegado há pouco em Antônio Dias Abaixo, vindas da beira-mar, informaram que não avistaram qualquer expedição ao longo do rio.
Iniciou a estação de chuvas e as divisões recolheram-se aos quartéis. As preocupações de Marlière aumentaram e, em 13 de novembro expediu ordem circular às divisões para ficarem aguardando, porém em estado de prontidão e, logo que aparecesse na barra, o comandante da 6ª DMRD deveria acionar a todos, por meio de canoas militares ligeiras. Caso de não se poder realizar o transporte por causa da cheia do rio, mandaria avisar de novo, para que elas se recolhessem aos quartéis, pois não convinha expor a saúde de tanta gente inutilmente.
Índios botocudos e canoas militares
Como ele imaginou, em 2 de março de 1828, Marlière recebeu a informação da tripulação de uma canoa de comércio, que havia visto a carga sendo transferida para as canoas militares da 6ª Divisão, com a ajuda da escolta das canoas de carga e de muitos índios botocudos que os acompanhavam a missão, entre a vila de Linhares e as cachoeiras das Escadinhas (Aimorés).
A 6º DMRD, ao chegar à cachoeira do Baguari, decidiu continuar o transporte até o destino, sendo acompanhados pelos divisionários e índios que aguardavam nos lugares marcados para a 1ª e 4ª DMRD.
Chegada em Antônio Dias
Em 18 de abril de 1828, chegavam ao destino os equipamentos cilíndricos vindas da Inglaterra para a fábrica de ferro de Monlevade, apesar do período das chuvas.
Segundo Marlière, a operação foi um sucesso e nada custou ao governo, pois as despesas correram todas por conta de Monlevade.
Forjas Catalãs entram em operação
Em 1840, no mapa da população de São Miguel do Piracicaba aparecia o nome de Monlevade como proprietário de 151 escravos. A sua fábrica fornecia produtos para as grandes companhias inglesas que exploravam o ouro, tais como a Saint John d’El Rey (Morro Velho) e a Imperial Brasilian Mining Association (Gongo Soco), além de produzir ferramentas agrícolas e abastecer o comércio de Ouro Preto e outras vilas.
Impulsionado pelas forjas de Monlevade, o número de fundições cresceu significativamente nas décadas seguintes e, mais ainda, a quantidade de tendas de ferreiro.
São Miguel do Piracicaba lidera produção de ferro
Em 1853, a usina de Monlevade produzia 160 toneladas de ferro/ano, com 150 escravos movimentando seis fornos, três forjas, quatro tendas, um maquinário de tornear ferro, dois rolos hidráulicos, três malhos, quatro trompas, duas mãos de pilão para socar minério compacto e um grande engenho de serrar madeira. O ferro produzido era transformado em ferramentas para a mineração, bem como enxadas, machados, foices, ferraduras, bigornas, ferramentas e matéria-prima para as tendas de ferreiro, entre outros produtos.
Em 1882, a produção de ferro localizava-se próximo às fontes de matéria prima e consumo, com São Miguel do Piracicaba e Santa Bárbara concentrando 40% da produção.
Haruf Salmen Espindola, historiador graduado pela UFMG, mestre em História Política pela UnB; doutor em História Econômica pela USP.